Martinho Lutero, Bartolemeo de Las Casas e a fé dos Outros

Lauri Emilio Wirth

                       

Observações preliminares

O protestantismo é um fenômeno relativamente recente na América Latina. As comunidades de diferentes denominações protestantes são um efeito da imigração europeia e norte-americana, no século XIX, em países como Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, entre outros. Surge assim o que nos meios acadêmicos convencionou-se chamar de protestantismo de imigração ou étnico. Um segundo movimento de inserção do protestantismo na América Latina é decorrente da ação de agências missionárias estrangeiras, procedentes, principalmente, dos EUA, a partir da segunda metade do século XIX. O fenômeno de maior impacto é ainda mais recente. Trata-se do pentecostalismo, que se faz presente na América Latina a partir do início do século XX, adquirindo ampla relevância social só nas últimas décadas deste século.

Era de se esperar, portanto, que, até o século XIX, o pensamento da Reforma Protestante tivesse pouca influência na América Latina. Basta lembrar que algumas obras de Lutero e Calvino foram traduzidas para o espanhol ou português, somente na segunda metade do século XX. Com pouquíssimas exceções, são editoras ligadas a igrejas protestantes que divulgam estas obras, o que sugere que sua circulação seja bastante restrita e destinada prioritariamente aos fiéis destas igrejas.

Contudo, a Reforma Protestante do século XVI e seus desdobramentos posteriores influenciaram decisivamente os rumos do cristianismo que se instalou na América Latina, desde os primeiros intentos de cristianização do continente no período colonial em, pelo menos, dois horizontes de sentido, que pautaram os imaginários, não só religiosos, das colônias ibéricas do continente. Por um lado, o assim chamado novo mundo se mostrava aos missionários católico-romanos como um espaço privilegiado para fundar um cristianismo moralmente superior à cristandade europeia em franco processo de esfacelamento; por outro, imaginava-se renovar a própria cristandade europeia a partir deste cristianismo colonial não “contaminado” pelas teses fundamentais da Reforma Protestante. Esta conjuntara transformou principalmente as teses centrais da teologia luterana numa ameaça que requeria permanente vigilância por parte dos estrategistas da colonização e cristianização do continente.

Há que fazer-se, contudo, desde logo, uma ressalva. O catolicismo romano colonial não pode ser considerado uma unidade monolítica. Há vários indícios de certa tensão entre um “catolicismo missional”, por um lado, e as estratégias centradas na instituição, orientadas pelo Concilio de Trento e focadas na autoridade dos bispos, por outro. E mesmo no plano institucional, é possível distinguir diferentes perfis e estratégias de atuação entre as dioceses do continente.  Não obstante esta variedade de rostos do catolicismo colonial, é possível constatar que a reforma do cristianismo é um tema que preocupa, de alguma forma, todo o catolicismo ao longo do processo de sua inserção na América Latina. O que pretendo discutir aqui, portanto, são alguns aspectos do pensamento reformador na América Latina no período colonial e, mais do que isto, pretendo mostrar que, em certo sentido, o pensamento católico na América Latina se aproxima de enunciados centrais da reforma protestante. Minha intuição parte da seguinte constatação da historiadora mexicana Alicia Mayer, que realizou ampla pesquisa sobre a repercussão da Reforma Protestante em alguns setores influentes do pensamento católico da América Latina:

“Também na Nova Espanha se manifestou a intencionalidade reformista, mas desde dentro da Igreja de Roma (...). Neste âmbito se pode ver o trânsito de uma igreja missional, baseada nas ideias de depuração da Philosophia Chisti (...), com o tipo de evangelização dos frades e seus métodos de organização social, a outra mais secular, sujeita às dioceses e ao controle dos bispos, conforme os novos ditames do Concílio de Trento. Uma e outra se proclamam contrárias ao protestantismo, embora não se possa negar certas afinidades entre o cristianismo missional e o evangélico luterano em seus inícios” (Mayer, 2008, p. 35).

É possível, portanto, suspeitar de certo grau de convergências e afinidades entre este “catolicismo missional” e o protestantismo, muito embora a prevalência das estratégias institucionais ao longo do processo, o que “não favoreceu as ordens religiosas, mas sim o clero secular” (Mayer, 2008, p 47).

Proponho, pois, identificar algumas destas possíveis transversalidades, convergências e afinidades, entre o catolicismo missional e a Reforma Protestante a partir de um olhar latino-americano. Ou seja, tento exercitar um lugar hermenêutico. O ponto de partida subjacente a este exercício hermenêutico são as consequências da cristianização que se impôs na América Latina no contexto da expansão colonial europeia. Contudo, não pretendo discutir, mais uma vez, o caráter predatório da cristianização unida ao colonialismo em nosso continente. O que pretendo ressaltar, ainda que apenas exemplarmente, é como a existência das vítimas da conquista impactou os discursos religiosos formulados a partir da América Latina e como estes discursos se relacionam com a Reforma Protestante. Além disso, tento descobrir indícios de assimilação do cristianismo pelas vítimas do processo colonizador, respectivamente sua adaptação e reelaboração a partir das dinâmicas locais de resistência e luta pela sobrevivência das culturas locais. 

Uma fonte importante que repercute o imaginário europeu sobre o assim chamado Novo Mundo são os relatos de viajantes. Trata-se de um conjunto de textos que colocam em circulação certa visão da América Latina, filtrada e construída a partir de códigos de sentido próprios do olhar europeu sobre o “novo continente”. Nesta categoria de escritos encontramos um livro de um jovem calvinista que conviveu com um povo indígena brasileiro, em 1557. Trata-se de uma fonte importante, na medida em que a descrição que é feita do Brasil de então está fortemente impactada pelas controvérsias e pelos conflitos religiosos na Europa da época, o que projeta um olhar diferenciado do autor sobre os povos indígenas e seus modos de vida, ao mesmo tempo em que o estranhamento diante da cultura local o leva a um olhar crítico em relação ao que vivencia no velho continente.

Um segundo eixo de reflexão é a assimilação das polêmicas entre católicos e protestantes por indígenas, vítimas da conquista e que, por circunstâncias históricas, ficaram divididos em fronteiras inimigas na luta das potências europeias pela conquista do continente latino-americano. Encontramos preciosos indícios desta controvérsia em fragmentos de correspondências entre lideranças indígenas brasileiras, impactadas pelo conflito entre Portugal e Holanda pela posse do nordeste do Brasil, na primeira metade do século XVII.

Por fim, pretendo exercitar uma leitura comparada entre Lutero e Las Casas[1]. O pressuposto aqui é o de que tanto Lutero como Las Casas são críticos da modernidade emergente no século XVI. Ambos fundamentam sua crítica na hermenêutica de textos sagrados e, no caso de Las Casas, também na disputa pela interpretação da tradição, no intento de responder a questões específicas decorrentes de um contexto social em profundas transformações. Lutero ataca o sistema emergente a partir do interior do próprio sistema, pois tem os territórios de língua germânica como horizonte de ação. A crítica de Las Casas é formulada a partir da fronteira do sistema. Sua marginalidade não é apenas geográfica, mas cultural, em sentido religioso e antropológico. A suspeita é a de que tanto para Lutero como para Las Casas a existência real e concreta das vítimas do moderno sistema mundial, em sua fase de expansão mercantilista, se transforma em critério de julgamento de todo o sistema emergente. Em ambos os horizontes de sentido, a vítima evidencia os limites do sistema, sua exterioridade, enquanto alteridade, em se tratando de outras culturas, ou como alteridade excluída e feito vítima, no caso do contexto germânico. É, pois, a partir das posturas diante da vida das vítimas que tento comparar Lutero e Las Casas, pois suspeito haver entre eles interessantes convergências e afinidades, ainda que eles se encontrassem em trincheiras confessionais opostas e, aparentemente, intransponíveis.

Jean de Léry: uma narrativa impactada pelo lugar do Outro

No Brasil, houve uma tentativa de estabelecer uma colônia francesa, entre 1555 a 1560, na região em que hoje se encontra a cidade do Rio de Janeiro. A colônia deveria ser um local de refúgio para os protestantes franceses, perseguidos pelas guerras religiosas na França, naquela época. Ao que tudo indica, o idealizador daquele projeto, o vice-almirante Nocolau Durand de Villegagnon (1510-1570),pretendia tirar proveito da instabilidade política na França de então. Além de fornecer uma saída para os atingidos pelo conflito religioso, o sucesso do seu empreendimento lhe daria as condições de declarar-se vice-rei daquela colônia francesa na América do Sul. Villegagnon foi expulso pelos portugueses e diante dos reveses sofridos pelos protestantes na França, retornou ao catolicismo.  Importa destacar que o próprio Calvino apoiou aquela iniciativa, enviando para o Brasil alguns missionários, três deles condenados à morte e executados em solo brasileiro.

O resultado mais significativo daquela inciativa, para nossos propósitos, foi um texto[2] escrito por um aluno de Calvino, que havia interrompido seus estudos de teologia para participar daquela aventura. Confrontado com os conflitos internos da efêmera possessão francesa no Brasil, Jean de Léry resolveu fugir da colônia de Villegangnon e viver entre os indígenas Tupinambás, por alguns meses. De volta à França, escreveu o livro que se tornaria um clássico da literatura de viajantes. Uma passagem ilustra bem o que pretendo destacar daquela narrativa:

“... ao dizer adeus à América, aqui confesso, pelo que me respeita, que, embora amando como amo a minha pátria, vejo nela a pouca ou nenhuma devoção que ainda subsiste e as deslealdades que usam uns para com os outros; tudo aí está italianizado e reduzido a palavras vãs, por isto lamento muitas vezes não ter ficado entre os selvagens nos quais, como amplamente demonstrei, observei mais franqueza do que em muitos patrícios nossos com rótulos de cristãos” (Léry, 1980, p. 251).

Temos aqui evidências interessantes do que se poderia chamar de uma narrativa a partir do lugar o outro. Presumo que a profundidade deste gesto só é compreensível se considerarmos a situação em que Léry se encontra: um protestante francês perseguido em seu país, desalojado politicamente e estigmatizado por motivos religiosos constrói uma narrativa na qual compara a vida do povo indígena com sua própria experiência de vítima na França. Em outras palavras, Lery esboça uma leitura crítica da sua realidade a partir da realidade da vida e da cultura do outro, no caso, os índios Tupinambás.

Em outro momento, Léry descreve com detalhes a prática da antropofagia e “outras crueldades dos selvagens para com os seus inimigos”. É o que lhe serve de pretexto para abordar um tema que também estava no centro das preocupações de Lutero: a prática da usura e suas consequências sociais na Europa de então:

“Em boa e sã consciência tenho que excedem em crueldade aos selvagens os nossos usurários, que, sugando o sengue e o tutano, comem vivos viúvas, órfãs e mais criaturas miseráveis, que prefeririam sem dúvida morrer de uma vez a definhar assim lentamente” (Léry, 1980, p. 203).

Em certo sentido, temos em Léry indícios do que hoje poderíamos chamar de fronteira hermenêutica, um terceiro lugar, entre a França e o povo que o acolhe no Brasil. A fronteira que Léry enuncia nasce do estranhamento diante do modo de vida dos indígenas e do reconhecimento da cultura do outro como legítima, portadora de uma racionalidade que lhe é própria e que, respeitada em sua especificidade, pode ser parceira de diálogo, sem ter que se submeter à visão de mundo cristã e europeia como critério de verdade. Parece-me ser este um aspecto que confere relevância àquela experiência ainda hoje, porque indica a possibilidade de certa convergência entre vozes proféticas daquela época, quando, numa realidade de conflito, constroem suas narrativas históricas a partir da situação das vítimas, ainda que se encontrassem em trincheiras opostas nas controvérsias religiosas. Teríamos aqui então um ponto de convergência interessante entre o calvinista Jean de Léry e o católico romano Bartolomeo de las Casas, de quem falarei mais adiante.

Uma Genebra na selva brasileira

Um segundo episódio importante de presença protestante no Brasil, no período colonial, está relacionado à ocupação holandesa do nordeste brasileiro, na primeira metade do século XVII. O pano de fundo político deste episódio está relacionado à União Ibérica de 1580 a 1640, quando Portugal e suas colônias passaram a ser administradas pela coroa espanhola. Como a Holanda estava em guerra com a Espanha, a invasão do Brasil pelos holandeses foi um desdobramento daquele conflito. Neste contexto, temos uma presença institucionalizada do protestantismo no nordeste brasileiro, por cerca de 25 anos. A igreja reformada no Brasil holandês chegou a constituir-se num sínodo da Igreja Reformada da Holanda. Com o fim da união ibérica e o fracasso econômico daquela aventura holandesa, o nordeste brasileiro foi novamente integrado ao domínio português[3].

Um legado importante daquele período são as cartas tupis. Trata-se de uma série de cartas trocadas entre os líderes indígenas Pedro Poti e Antonio Paraupeba, por um lado, com o também índio potiguara Antonio Filipe Camarão, por outro. Poti era calvinista e, após viver por cinco anos na Holanda, retornou ao Brasil para, juntamente com Antonio Paraupeba, tornar-se um importante líder da ocupação holandesa. O capitão Antonio Filipe Camarão era católico romano e primo de Poti, e lutava ao lado dos portugueses.

Para os propósitos desta reflexão, estes documentos[4] são importantes em vários aspectos. Eles mostram como os povos conquistados, neste caso, os índios Potiguara, reagiam à conquista europeia e dela tentavam tirar proveito. A religião é uma referência constante em toda a interlocução. Assim, Camarão tenta seduzir Poti a se aliar aos portugueses:

“Mandei-vos aquele recado a mercê de Deus, senhor Pedro Poti, porque sois um bom parente. Sai desse lugar, que é como o fogo do inferno” (...) Não sabeis que sois cristão? Por que vos quereis perverter? Sois um filho do nosso Deus, porque quereis estar sob o ímpio? (Ribeiro, 1993, p. 229).

Estas poucas palavras reperguntem pelo menos dois horizontes de sentido de longo alcance. Em primeiro lugar percebemos nelas a referência ao parentesco, o sentido de pertença à mesma etnia, um elemento fundamental na identidade indígena; em segundo lugar temos a indicação de que esta identidade encontra-se impactada pela religião do invasor, que coloca parentes de um mesmo povo em conflito e em trincheiras opostas, numa guerra de conquista. São os primeiros sinais da intolerância religiosa, um dos resultados duradouros do tipo de cristianismo trazido para as Américas no bojo das conquistas europeias. Ambos os temas estão presentes na resposta de Pedro Poti, possivelmente um dos primeiros indígenas assumidamente protestantes em toda a América:

“Eu me envergonho da nossa família e nação ao me ver ser induzido por tantas cartas vossas à traição e deslealdade, isto é, de quem tenho recebido tantos benefícios”. (Ribeiro, 1993, p. 229)

Poti faz referência à educação que recebeu dos holandeses que “nos chamam e vivem conosco como irmãos; portanto, com eles queremos viver e morrer”. Um tema central na argumentação de Poti é a escravidão. De fato os holandeses não praticavam a escravidão entre os indígenas, possivelmente por estratégia política, pois necessitavam de aliados na luta contra os portugueses na disputa pelas terras indígenas. Poti ressalta este aspecto, embora pareça não se incomodar com a escravidão africana, amplamente praticada pelos holandeses no Brasil. Afirma que a respeito dos holandeses, “jamais se ouviu dizer que tenham escravizado algum índio ou o mantido como tal, ou que hajam em qualquer tempo assassinado ou maltratado um dos nossos”. Por outro lado, Poti se refere a confrontos ocorridos entre portugueses e holandeses, para acusar os portugueses dos “ultrajes que nos têm feito, mais do que aos negros”. Como que a interpelar a identidade indígena originária, convoca seu parente a igualmente aliar-se aos holandeses:

“Não Phillippe, vós vos deixais iludir; é evidente que o plano dos celerados portugueses não é outro senão o de se apossarem deste país, e então assassinarem e escravizarem tanto a vós como a nós todos. (...) Vinde, pois, enquanto é tempo para o nosso lado a fim de que possamos com o auxílio de nossos amigos viver juntos neste país, que é a nossa pátria e no seio de toda a nossa família” (Ribeiro, 1993, p. 230).

A exemplo de Filipe Camarão, a religião cristã é uma espécie de referência de fundo na argumentação de Poti, só que aqui na versão protestante calvinista: “Sou cristão e melhor do que vós: creio só em Cristo, sem macular a religião com idolatria, como fazeis com a vossa. ... Aprendi a religião cristã e a pratico diariamente ...” (Ribeiro, 1993, p. 230).

Julgo oportuno mencionar este diálogo como um sinal das vozes sufocadas no processo da conquista europeia. Mais do que apontar para a existência destas vítimas, este diálogo nos convida a ouvirmos as suas vozes e a decifrar os sentidos que as próprias vítimas atribuíam à história que estavam vivenciando e sofrendo. Trata-se de um exercício nada simples, mas necessário. Diálogos assim são pequenos indicativos de como a conquista europeia se processava nos espaços da vida cotidiana da América Latina colonial. Neles podemos perceber como lideranças indígenas assimilavam e reelaboravam o cristianismo que aqui chegou como parte integrante da expansão colonial europeia. Penso ser este um esforço necessário, quando nos perguntamos pelos sentidos atuais da reforma protestante, para não repetirmos no campo da elaboração teológica, o colonialismo que criticamos no plano retórico.

Este perigo está presente até nos relatos que menciono acima.  Eles chegaram até nossos dias traduzidos e incorporados à lógica europeia de escrever a história. É possível que neste esforço de tradução, muito da alteridade indígena que lhes é própria tenha se perdido. Um estudo dos originais ainda preservados nos ajudaria neste exercício de estranhamento e de respeito pelo outro em sua alteridade e diferença. Espero que ainda tenhamos a oportunidade de dialogar com os descentes daqueles povos, quando se apoderarem desta memória e a reinscreverem na história comum que vivemos. Mas é significativo que nestes fragmentos podemos encontrar os ecos mais remotos da Reforma Protestante em nosso continente. E neles há indícios de como temas relevantes da Reforma foram acolhidos e recriados a partir das dinâmicas locais, por lideranças locais legitimados pelos povos que aqui viviam. Temos aqui um vasto horizonte de reflexão e de possibilidades, infelizmente interrompidas pelo caráter predatório da conquista europeia.

Pedro Poti, que se dizia fiel aos holandeses até à morte, foi preso e morto pelos portugueses que venceram aquela batalha. Muitos indígenas aliados dos holandeses retiraram-se floresta adentro, numa região chamada de Ibiapaba. Foram encontrados alguns anos mais tarde por uma expedição comandada pelo jesuíta Antônio Vieira. Segundo este missionário conhecido como um defensor da liberdade indígena, com a chegada daqueles remanescentes da colonização holandesa, Ibiapaba havia se transformado na “Genebra de todos os sertões do Brasil”. Pois estes fugitivos para lá levaram “... o que tinham aprendido nesta escola do Inferno ...”. E por “muitos deles saberem ler e trazerem consigo alguns livros, foram recebidos e venerados dos Tabajaras, como homens letrados e sábios, e criam deles, como de oráculo, quando lhes queriam meter em cabeça” (Ribeiro, 1993, p. 276).

Mais do que a apropriação dos impulsos da Reforma pelas vítimas do processo colonial, temos aqui interessantes indícios da reação indígena ao processo da conquista da qual são vítimas, a partir da lógica interna dos povos conquistados. O povo Potiguar, aliado dos holandeses, se retira sertão adentro. É acolhido e admirado pelo povo Tabajara por “saberem ler e trazerem consigo alguns livros”. Vieira relata vários episódios que podem indicar para esta reelaborações de enunciados fundamentais do cristianismo por lideranças indígenas, em meio ao conflito da conquista colonial. Poderíamos falar da possibilidade de um cristianismo indígena, que emerge das dinâmicas locais e da defesa da vida das vítimas, a exemplo de um cristianismo paulino dos primeiros séculos da era cristã? Eis um destes episódios:

“Exortava o padre a certo gentio velho que se batizasse, e ele respondeu que o faria para quando Deus encarnasse a segunda vez, e, dando o fundamento do seu dito, acrescentou que, assim como Deus encarnara uma vez em uma donzela branca para remir os Brancos, assim haveria de encarnar outra vez em uma donzela índia para remir os Índios, e que então se batizaria”. (Ribeiro, 1993, p. 276)

Para perplexidade de Vieira, esta esperança messiânica indígena não se restringe à imaginação teológica. Ela revela uma postura de resistência das vítimas da conquista, não ao Deus dos europeus, mas à dominação praticada pelos crentes europeus deste Deus. Aqui Vieira se refere a uma profecia dos “seus letrados”, quando afirmam “que Deus quer dar uma volta a este mundo, fazendo que o Céu fique para baixo e a Terra para cima, e assim os Índios hão de dominar os Brancos, assim como agora os Brancos dominam os Índios” (Ribeiro, 1993, p. 276).

Mas também aqui se repete no nível local o que é uma tendência geral na invenção europeia da América Latina: os saberes locais são abortados e subsumidos à lógica do processo colonizador. Vieira relata que todos foram submetidos a um programa de recatolização, ao qual eram obrigados pela força, pelo “braço dos padres”, quando não o faziam voluntariamente (Ribeiro, 1993, p. 277).

O tema da Reforma Protestante na constituição da Identidade Católico-Romana da América Latina.

Passo agora a abordar outro aspecto da influência protestante na América Latina. Trata-se da presença de temas da Reforma Protestante no pensamento católico-romano em nosso continente, no período colonial. Este recorte é importante para situar adequadamente uma possível comparação entre a ação e a produção teológica de Bartolomeo de Las Casas e alguns aspectos do pensamento de Lutero.

Ao contrário do que a ideia da Cristandade Colonial pudesse sugerir, a Reforma Protestante é um tema recorrente no pensamento crioulo que se gesta na América Latina. Principalmente o nome de Lutero, mas também de outros reformadores como Zwinglio, Melanchton e Calvino, são constantemente lembrados pelo pensamento católico-romano nas colônias ibéricas.  Dito de outra maneira, em certo sentido, pelo menos no campo retórico, o catolicismo romano no período colonial é gestado como reação à Reforma Protestante, na medida em que ela é constantemente evocada como a grande ameaça para os rumos da igreja em geral e, principalmente, para o tipo de sociedade que se imaginava implantar nas colônias ibéricas. No que segue, aponto algumas características deste antiprotestantismo. Meu objetivo, contudo, não é o de ressaltar as barreiras impostas ao protestantismo na América Latina, por mais de 300 anos. Interessam-me possíveis transversalidades, temas que apontam para convergências e possíveis aproximações, mesmo que seus interlocutores se encontrassem em trincheiras opostas em que a interlocução pacífica era praticamente impossível, antes que ideias liberais e processos de secularização diminuíssem o papel da religião nestas sociedades em formação.

Antes de discutir estas possíveis transversalidades, anoto alguns aspectos da retórica colonialista através dos quais Lutero “se tornou presa de uma identificação simbólica que o lançou para fora dos parâmetros da História”[5], como um mito e protótipo do mal. Trata-se de uma estratégia retórica materializada em tratados teológicos, sermões, textos de cronistas,  cartas pastorais, além de obras de arte barroca que, de alguma forma, remetem a expoentes da Reforma, como Lutero, Zwinglio, Melanchton, Calvino, dentre outros. Ou seja, o foco aqui não está na atuação de protestantes na América Latina colonial, nem na propagação de livros protestantes, cuja divulgação era proibida. Também não se trata da repercussão imediata dos eventos que agitavam a Europa no século XVI.  De certa forma, o protestantismo é inerente ao próprio catolicismo que aqui se gesta, como ameaça a ser evitada, como perturbador da consciência dos estrategistas da cristandade colonial.

Parece estar aqui uma das raízes profundas da identificação entre catolicismo romano e cultura latino-americana, um aspecto que não será discutido aqui. De qualquer forma, parece ser possível identificar o locus social deste imaginário como próprio da hierarquia eclesiástica, da intelectualidade crioula das universidades, das estruturas de poder e de coerção, como o Tribunal do Santo Ofício.

No plano teológico, a condenação da “heresia luterana” aparece vinculada à afirmação de temas questionados pela Reforma, como o valor salvífico das boas obras, o sacrifício da missa, a prática da confissão e da penitência, o papel da tradição na interpretação da Bíblia, o sacramento da ordem, entre outros. Ou seja, defende-se insistentemente a ortodoxia teológica com foco na preservação da ordem religiosa vigente.

Neste ambiente, são muitos os supostos indícios de heresia listados em textos apologéticos, em processos da inquisição, em denúncias e suspeitas diversas: falar bem de Lutero, negar o livre arbítrio, rechaçar a autoridade dos santos, vociferar contra ou destruir imagens sagradas, não assistir procissões e missas, não recitar orações em latim, não frequentar os sacramentos. Propaga-se, assim, a necessidade de constante vigilância, pois tais atitudes constatadas no cotidiano ou de alguma forma perceptíveis em textos escritos levantavam suspeita de luteranismo, mesmo quando seus protagonistas não tinham consciência deste fato (Mayer, 2008, p.161). Eventualmente ocorre que o combate às ideias dos reformadores tem o efeito contrário ao que se esperava alcançar. É o que parece ter acontecido com o frei dominicano Gragorio de Castro, que foi denunciado à inquisição por seus colegas de ordem por ser “muito aficionado à doutrina do perverso Martin Lutero”. Castro tinha lido a crítica que Thomas Morus fazia à compreensão luterana dos sacramentos e, ao contrário do Morus, parecia inclinar-se favoravelmente a Lutero (Mayer, 2008, p. 169). Há também registros de catecismos em línguas indígenas acusados de conterem ideias luteranas. É o caso do Diálogo da doutrina cristã na língua Mechoacán, do franciscano Maturino de Gilberti (Mayer, 2008, p.175).

Outro plano retórico em que o protestantismo aparece com destaque são os discursos legitimadores da conquista. Exemplar desta ordem de discursos é o texto do franciscano Gerónimo de Mendieta (1528? – 1604), especialmente sua “História Eclesiástica Indiana”, escrita entre 1562 e 1592. Nela Mendieta compara Lutero com Fernão Cortês. Considera significativo que a conquista do México e a Reforma Protestante tenham sido fenômenos paralelos. Aqui o conquistador do México é interpretado como um valoroso instrumento de Deus para compensar a igreja romana pela perda de fiéis na Europa. Em Mendieta, a guerra de conquista é glorificada como estratégia missionária e a cristianização dos índios mexicanos tem relação direta com a crise da cristandade europeia:

“Débese aqui mucho ponderar, cómo sin alguna duda elegió Dios señaladamente y tomó por instrumento a esto valeroso capitán don Fernando Cortés, para por medio suyo abrir la puerta y hacer camino a los predicadores de su Evangelio en este Nuevo Mundo, donde se restaurase y recompensase la Iglesia Católica con conversión de muchas ánimas, la perdida e daño grande que el maldito Lutero había de causar en la misma sazón y tiempo en la antigua cristiandad. De suerte que lo que por una parte se perdía, se cobrase por otra” (Mendieta, liv III, cap. 1, p. 174, apud Mayer, 2008, p. 123).

No combate ao perigo luterano, Cortês, ocasionalmente, também é apresentado como um aliado estratégico de Inácio de Loyola. Exemplar para este linha de interpretação é a obra do jesuíta mexicano Francisco de Florência (1619-1695). Enquanto Loyola conquista almas para a igreja através do combate à idolatria, à impiedade e à heresia, o conquistador do México, como um novo Moisés, ganha territórios e súditos para a coroa espanhola. A obra de Florência agrega um novo foco de ameaças proveniente da Europa da Reforma. É a penetração do luteranismo através da ação de piratas, principalmente holandeses, com seus temidos saques, amplamente documentados ao longo de todo o século XVII (Mayer, 2008, p.217-218).

Há estas alturas o luteranismo já não se refere necessariamente à teologia luterana ou a algum reformador. Heresia luterana equivale a uma metáfora do mal, aplicada indistintamente a qualquer indício de divergência teológica ou de questionamento da ordem vigente. Ela pode ser aplicada tanto para protestantes, judeus, idólatras e pecadores em geral. Finalmente ela também se aplica aos dissidentes políticos.

É o que pode-se mostrar exemplarmente com referência a um dos principais líderes da luta pela independência do México, Miguel Hidalgo y Costilla (1753 – 1811). Inicialmente suas críticas à escolástica o tornariam suspeito diante a hierarquia eclesiástica, da universidade e do santo ofício. Quando abandou a igreja para liderar o movimento de independência foi perseguido e condenado à morte como cismático e herege. Na trajetória de Hidalgo é possível identificar um novo deslocamento na retórica de combate à heresia. Ela se desloca da controvérsia teológica para a filosófica. Contudo, na visão da hierarquia religiosa, Lutero estava na raiz de todo este desenvolvimento: segundo o alto clero do início do século XIX “era necessário lutar destemidamente contra a crescente secularização, as ideias antirreligiosas e francamente antieclesiásticas, e Lutero era considerado o homem que com seus postulados havia originado tudo isto num pesadelo” (Mayer 2008, p. 373).

Ecos da Reforma protestante no projeto missionário de Las Casas

Quando Lutero divulgou suas teses em 1517, Las Casas já estava empenhado em denunciar as consequências da ocupação espanhola no Caribe. Sua detalhada descrição das condições em que homens, mulheres e crianças eram forçados a extrair ouro das minas e carrega-lo até 150 léguas de distância, sem alimentação adequada, sem lugares de repouso, em deslocamentos forçados que separavam filhos dos pais e mulheres de seus maridos impressiona pela brutalidade e desumanidade no trato com as vítimas indígenas da conquista. Já então, Las Casas apresenta uma série de “remédios”, com reivindicações que iriam pautar toda sua atuação profética em defesa dos indígenas[6]. Não irei discutir aqui a abrangência da atuação de Las Casas, nem repercutir o debate que sua atuação suscita. Associo-me aqueles que, como Enrique Dussel, consideram Las Casas o principal representante do máximo de consciência crítica mundial possível, cujo pensamento revela uma teoria de pretensão universal de verdade, que obriga a levar a sério os direitos e os deveres do Outro[7]. Penso ser esta a razão que torna a atuação de Las Casas absolutamente relevante ainda em nossos dias.

Os pontos de contato entre Lutero e Las Casas, contudo, não se restringem ao fato de terem vivido no mesmo período histórico do século XVI. Tomás de Vio, o cardeal Cayetano (1469-1534), dominicano como Las Casas, que interrogou Lutero em Augsburgo, em 1518, era também responsável pelo envio dos freis de sua ordem para o Novo Mundo (Mayer, 2008, p. 53). Não consegui averiguar se há contatos mais diretos entre Cayetano e Las Casas, mas este detalhe me parece relevante, pois sugere não só haver uma relação entre o combate à Reforma Protestante na Europa e a preocupação pela cristianização dos povos conquistados pelos espanhóis, como ficou demonstrado acima, mas que estas duas frentes de ação em parte eram levadas a efeito pelos mesmos atores históricos.

Tanto mais surpreendente me parece ser o fato de a Reforma Protestante não ser um tema relevante nos escritos de Las Casas, pelo menos não naqueles referentes à cristianização dos povos do chamado Novo Mundo. Em seu exaustivo estudo sobre o combate às ideias da Reforma na Nova Espanha, Alicia Mayer dá pouco destaque a Las Casas. Faz referência a duas obras, em que aparecem críticas contundentes a Lutero: a “Questio Teologalis”, obra escrita entre 1560 e 1563, somente publicada na Espanha, em 1990, por Paulino Castañeda e Antonio Carcía del Moral; e a “De Regia Potestate”, publicada em Frankfurt, em 1571, cuja autoria atribuída a Las Casas não é consensual (Mayer, 2008, p. 115). Como estas obras são posteriores à atuação de Las Casas na América espanhola, não as discutirei aqui.

Nos textos que respaldam este ensaio, as referências de Las Casas à Reforma Protestante aparecem mais como argumento indireto na defesa dos índios do que um tema de debate propriamente dito. Isto pode ser visto, por exemplo, no seu posicionamento referente à fracassada tentativa de estabelecer uma colônia alemã na Venezuela. Entre 1528 a 1546, no âmbito de uma negociação de dívidas, a casa comercial Welzer, de Augsburgo, recebeu do coroa espanhola autorização para colonizar e explorar parte do território hoje correspondente à Venezuela. Las Casas é um crítico deste arranjo. Numa carta de 15 de outubro de 1535, escrita em Granada, Nicarágua, e dirigida a uma pessoa não identificada da corte espanhola, ele se refere à Venezuela como uma terra firme que os “alemães se encarregaram de roubar e destruir com delitos e estragos que os demônios não fariam pior”. Sugere que o rei da Espanha está sendo mal aconselhado quando toma decisões desta natureza e, nesta linha de argumentação, levanta a suspeita de que os alemães que devastam aqueles territórios poderiam ser luteranos:

“São estes os pregadores que o rei envia para converter os que lhe são confiados? (...) Ele não se dá conta também que [eles] já hoje têm roubado, ou ao menos têm feito mais danos que vale toda a Alemanha? Também se diz por aqui que os alemães que por ali tem andado são todos hereges e paridos por aquela besta fera de Lutero. Parece a VS que aqueles tais salvarão os índios com a sua conversação, assim que lhes dessem a vida?”[8]

Como ocorre nas outras controvérsias sustentadas por Las Casas, também aqui o foco da argumentação é a defesa da vida das vítimas da conquista. A referência a Lutero só faz sentido como reforço a este argumento. Em outras palavras, o foco das críticas aos “hereges e paridos por aquela besta fera de Lutero”, não está no fato de serem hereges, mas na atuação prática e concreta destes conquistadores, que massacram os indígenas e destroem suas condições de vida. Isto fica ainda mais claro na sequência do texto, quando Las Casas sustenta que a conquista e não a evangelização é o objetivo de todas as incursões pelas terras indígenas da Nova Espanha. Só que aqui ele compara os espanhóis aos muçulmanos, que no tocante ao trato dos povos conquistados por eles se mostrariam menos cruéis:

“Não é este, senhor, o caminho de Cristo; não a maneira de pregar seu Evangelho; não o modo e o costume de converter as almas, mas é a via que tomou Maomé, e ainda pior que Maomé, que dizia ter vindo in vi armorum, porque, aos que por armas subjugava e que criam em sua seita, dava a vida. Aqui, os Índios que com alegria e de boa vontade se submetem e recebem a seu Deus, os espanhóis despedaçam e infernizam suas vidas”.[9]

Por que Las Casas lembra Maomé imediatamente após referir-se a Lutero? Este me parece um detalhe nada fortuito. Como vimos acima, a chamada heresia luterana era constantemente lembrada pelos ideólogos da cristianização da América Latina como uma ameaça e um perigo para o projeto colonial em curso. Nesta ordem de discurso, luteranos, judeus e muçulmanos, como mais tarde os modernistas, emergem indistintamente como inimigos a serem combatidos. Pelo visto, Las Casas não reproduz esta lógica do discurso colonial. Ao contrário, ele se vale destes estereótipos como uma espécie de espelho para desmascarar a desumanidade da conquista em curso. Vistos a partir das vítimas da conquista, todos os conquistadores são hereges, sejam eles cristãos, muçulmanos ou judeus. No plano discursivo ou, se assim quisermos, no método teológico, temos aqui certa semelhança entre Las Casas e o texto de Jean de Léry, discutido acima, embora este não tenha desenvolvido nenhuma ação prática em defesa dos índios brasileiros. Ou seja, ambos conseguem dialogar com outras culturas e delas extrair elementos que lhes permitem esboçar um pensamento crítico em relação à própria cultura em que estão situados, com foco prioritário nas vítimas que esta cultura produz.

Neste sentido seria interessante detalhar o que Las Casas entende por “caminho de Cristo”. Este parece ser um ponto importante de convergência entre o pensamento de Las Casas e Lutero, na medida em que ambos imaginavam e propugnavam uma sociedade impactada pela fé cristã, ainda que ancorada em realidades históricas completamente diferentes. Comum neste imaginário seria então um pensamento teológico a partir da vida das vítimas, o que permitiria ver tanto a Las Casas como a Lutero como críticos do mesmo sistema mundial emergente, o que me parece mais relevante que encarcerá-los nas controvérsias teológicas da época, típicos da cristandade medieval em decomposição.

A mesma lógica argumentativa que relaciona Lutero à quista da Venezuela pelos Welzer, Las Casas aplica em outras referências. Ou seja, acusar os ideólogos da conquista espanhola de luteranos é um recurso retórico, cujo foco não está na Reforma Protestante, mas na defesa das vítimas da conquista. Em outras palavras, como o combate à heresia luterana era ostentada como um dos eixos legitimadores do colonialismo espanhol, Las Casas se vale deste recurso para igualar os conquistadores e seus ideólogos aos hereges que estes diziam combater.

Neste sentido, é esclarecedor que Juan Ginés de Sepúlveda, o grande ideólogo da conquista espanhola, construa sua defesa da guerra como método legítimo para cristianizar a América espanhola em diálogo com um suposto Leopoldo, um alemão “um tanto contagiado dos erros luteranos” (Sepúlveda, 1987, p. 49). O primeiro argumento que Sepúlveda põe na boca de Leopoldo poderia ser literalmente copiado de um texto de Lutero: “... não há razão que baste para convencer-me de que a guerra seja lícita, muito menos entre cristãos”. (Sepulveda, 1987, p. 51). Como sabemos, Lutero é taxativo contra a legitimação religiosa de qualquer guerra. Basta lembrar que este é um argumento central em seus textos relativos à guerra contra os turcos: “cristãos não devem guerrear”[10]. Ao que parece, Supúlveda, ao colocar esta afirmação na boca de Leopoldo, sugere que aqueles que se opõem à guerra contra os índios agem como luteranos.

De fato há um ponto de convergência entre o pensamento de Las Casas e Lutero no que concerne ao debate sobre a possibilidade de uma guerra ser considerada justa. Ambos concordam que só a guerra de resistência pode ter alguma legitimidade. Para Lutero a guerra é uma questão de Estado e restrita ao âmbito das relações políticas, sem possibilidade de ser legitimada pela religião:

“Se o estandarte do imperador .... ou de algum príncipe se achar no campo de batalha, então cada um ande destemido e alegre ao seu lado por lhe ter prestado juramento ... Se, contudo, o estandarte de um bispo, cardeal ou papa estiver presente, aí fuja e diga: ‘eu fora, nada tenho a ver com isso!’”[11].

Da mesma forma, para Las Casas, não é possível combater outros povos porque praticam uma religião diferente daquela dos cristãos, pois, segundo ele, não há, nem nos textos sagrados, nem na tradição cristã, fundamentação para tal postura. O mesmo vale para a organização política e social dos diferentes povos:

 

“Quaisquer nações e povos, por infiéis que sejam, possuidores de terras e reinos independentes, que habitam desde o princípio, são povos livres, que não reconhecem fora de si nenhum superior, exceto os seus próprios, e este superior ou superiores tem a mesma plena potestade e os mesmos direitos de príncipe supremo em seus reinos, que os que agora possui o imperador em seu império”[12].

 

Por questões conjunturais da época, o pensamento de Lutero está centrado na nítida distinção entre a esfera civil e religiosa, quando trata de possíveis conflitos entre diferentes nações. Em Las Casas a defesa da vida das vítimas de uma guerra injusta ocupa o foco da argumentação. Mas o que pretendo ressaltar aqui é mais um aspecto comum entre eles. Quer me parecer que em comum a ambos há um princípio de autodeterminação dos povos. Ou seja, diferenças culturais e religiosas não justificam a agressão de um povo sobre o outro, pois todas as nações devem ser respeitadas em suas diferenças, com seus respectivos poderes instituídos, sem relações de hierarquia que classifiquem as nações como superiores e inferiores.

Os indícios acima listados parecem ser suficientes para apontar vários pontos de convergência entre Lutero e Las Casas. Para finalizar gostaria de apontar mais uma questão que me parece crucial. Uma característica central das controvérsias religiosas dos séculos XVI e XVII, é a disputa hermenêutica em torno dos textos sagrados e da correta interpretação da tradição. Isto porque estamos em um tempo em que a religião funciona como norma externa e universal que fundamenta a visão de mundo e das sociedades da época. Os tempos modernos dispensam esta disputa, na medida em que a modernidade ocidental logrou impor sua visão particular de mundo como critério universal absoluto, o que concretamente redunda na subordinação e desqualificação, senão no aniquilamento de tudo e de todos que não se enquadram nos critérios da racionalidade eurocêntrica.

Quer me parecer que tanto Lutero como Las Casas perceberam o potencial predatório deste processo emergente, na medida em que subordinam a economia e a política à preservação concreta e cotidiana da vida. O combate de Lutero à usura e suas críticas ao mercantilismo emergente parecem apontar nesta direção. A perversidade inerente à formação de preços pela lei da oferta e procura lhe é perfeitamente familiar: “... por causa de sua ganância, a mercadoria precisa custar tanto mais quanto maior for a necessidade do próximo, de modo que a necessidade do próximo acaba definindo o preço e o valor da mercadoria”[13]. Mas Lutero não se atém a esta constatação e não trata da ganância como uma questão de moral individual. Ele vislumbra claramente o caráter sistêmico e universal das práticas que critica e cujos mecanismos têm a capacidade de mostrar o mal como se fosse um bem e de mascarar a injustiça para se apresentar como uma prática de justiça: “Em primeiro lugar, é preciso saber que, em nossos dias (...) a ganância e a usura não apenas se instalaram imensamente em todo o mundo, mas que alguns também se atreveram a descobrir alguns subterfúgios sob os quais podem praticar livremente sua maldade sob o manto da justiça”[14].

Da mesma forma, a denúncia da ganância como verdadeiro motor das conquistas espanholas perpassa toda a obra de Las Casas[15]. Semelhante a Lutero, Las Casas percebe claramente o caráter sacrificial e idolátrico do sistema de ganância e usura que “se instalaram em todo o mundo” e da mesma forma como denunciado por Lutero na Alemanha, na conquista ibérica se exigem sacrifícios humanos a uma deusa chamada cobiça. É o que Las Casas diz, quando denuncia “que os espanhóis, em cada ano dos que estão nas Índias, depois que entram em cada província, sacrificam mais a sua deusa amada e adorada, a cobiça, do que os índios sacrificavam a seus deuses durante cem anos em todas as Índias” (Apud Gutiérrez, 1993, p. 154).

Teríamos, assim, um princípio comum entre Lutero e Las Casas, embora eles se encontrem em trincheiras confessionais opostas e atuem em contextos culturais e geográficos distintos: a defesa da vida das vítimas do novo sistema mundial emergente no século XVI como norma para julgar os poderes que fundamentam e dão sentido a este sistema. Se esta tese se sustentar, chegaremos a um critério hermenêutico atual e verdadeiramente ecumênico a partir do qual se pode interpelar todo e qualquer sistema moderno e atual. Isto equivale a dizer que o poder de Deus não se manifesta na lógica e nos êxitos dos sistemas de poder, mas no grito das vítimas que qualquer sistema produz.

Penso que chegamos, assim, a uma questão crucial e de grande atualidade: a relação com o clamor dos excluídos, com a falta da justiça, com a ausência de condições de vida digna é que revela a verdade de qualquer projeto de sociedade. Teríamos assim um critério universal para julgar qualquer proposição teológica com pretensões de verdade universal. A aplicação deste critério aparentemente levou a resultados distintos nos contextos e nas respectivas realidades em que ambos os teólogos atuavam. Las Casas, aparentemente, acreditava em algo como uma confederação cristã de livre adesão, em que o cristianismo seduziria os indígenas pelo bom exemplo, pela prática da justiça, pelo respeito às formas de governo indígena e suas autoridades constituídas. Imaginava a convivência pacífica entre indígenas e agricultores espanhóis, que se sustentariam pelo próprio trabalho e não pela exploração predatória das riquezas naturais, que por direito natural pertenceriam aos povos locais.

Parece que em Lutero é possível constatar maior realismo político, fundamentado na convicção de que todo projeto de sociedade é necessariamente limitado e imperfeito, o que não o impedia de criticar de forma contundente os poderosos e as autoridades da época. O realismo político de Lutero e sua atuação a partir do centro do poder mundial emergente, e não a partir de suas margens como Las Casas, talvez ajude a entender sua postura em relação à Guerra Camponesa de 1525. Vale lembrar que Lutero considerou justas e legítimas as reivindicações dos camponeses em seus aspectos sociais, embora condenasse de maneira intransigente a forma pela qual eles propunham coloca-las em prática.

Por fim, me parece comum a Las Casas e Lutero, a frustração em relação às mudanças sociais que ambos imaginavam. Em um de seus últimos textos, Las Casas, pouco antes de morrer, dirigia-se ao Papa Pio V, em 1566, para suplicar “humildemente” por uma mudança nos cânones da Igreja para mandar os bispos que “tenham cuidado dos pobres cativos, homens aflitos e viúvas, até derramar seu sangue por eles, segundo são obrigados por lei natural e divina ...”. No mesmo documento denuncia que: “Grandíssimo escândalo e não menos detrimento de nossa santíssima religião cristã é o fato de, naquela nova plantação, bispos, frades e clérigos enriquecerem magnificamente, permanecendo seus súditos recém-convertidos em tão grande e incrível pobreza que muitos por tirania, fome, sede e trabalho excessivo morrerem miserabilissimamente cada dia ...”. Las Casas interpela ao Papa para que “declare aos tais ministros que são obrigados por lei natural e divina (...) a restituir todo o ouro, prata e pedras preciosas que adquiriram, porque tiraram de homens que padeciam extrema necessidade... .”[16].

Igualmente é conhecida a frustração de Lutero, principalmente com os rumos da sociedade alemã após a Reforma, como se pode verificar exemplarmente nesta passagem: “Até agora, cometi a loucura de esperar dos homens algo que não reações humanas. Pensei que poderiam se conduzir segundo o Evangelho. O resultado nos mostra que, fazendo pouco do Evangelho, querem ser coagidos pela espada e pelas leis” (Apud Febvre, 2012, p. 288).

Considerações finais

O cristianismo chegou à América Latina no bojo de um processo violento de ocupação. Aos conquistadores interessavam as riquezas naturais do continente e os lucros decorrentes da exportação de produtos primários para o mercado mundial emergente, produzidos quase que exclusivamente com mão de obra escrava. Neste processo, os conquistadores contavam com o aval dos seus respectivos Estados Nacionais, sejam eles Espanha, Portugal ou Holanda, interessados na ampliação de seus territórios e na taxação das riquezas extraídas das colônias. Os conquistadores contavam também com o beneplácito das igrejas, principalmente a Católica Romana, mas também da Protestante, quando da sua presença esporádica no século XVI e VII, interessadas na conquista de fiéis e ativamente envolvidas no processo de conquista.

Mas este processo foi ambíguo e perpassado por contradições e conflitos nos desdobramentos práticos da conquista. Tentei esboçar aqui três possibilidades de reflexão e de leitura deste amplo processo. Um deles está focado nas dinâmicas locais. Isto implica em perguntar como as culturas locais encontraram nas suas dinâmicas internas e nas visões de mundo que lhe são próprias elementos para reagir, se adaptar e influenciar os rumos do processo em curso. Isto implica em perguntar como as vitimas do processo colonizador se fizeram sujeitos e deram sentido às transformações em curso. Ainda que seus saberes e suas experiências tenham sido subsumidas à lógica do colonizador, eles pertencem não só à história do nosso continente, mas são visões de mundo vivas e ativas na atualidade, que precisam ser ouvidas, respeitadas e integradas também à elaboração teológica comprometida com a defesa da vida no mundo comum e plural que nos cabe viver.

O segundo eixo de reflexão que tentei apontar pergunta pelo impacto das dinâmicas das culturas locais na visão de mundo do próprio colonizador, especialmente daqueles referenciados no cristianismo. Bartolomeo de Las Casas é o expoente máximo desta tendência. E isto já havia sido percebido por vários interpretes da América Latina, mesmo fora do campo dos estudos da religião, como sugere a seguinte afirmação de José Carlos Mariátegui, que já no início do século XX se refere à atuação de Batolomeo de Las Casas como “aquele em quem floreciam as melhores virtudes do missionário, do evangelizador”, que teve “precursores e continuadores” (Mariátegui: 2004, p. 120). É significativo que este autor não religioso assume as culturas locais como um locus hermenêutico privilegiado para se pensar o futuro da América Latina e constata que isto não é possível à revelia do fator religioso local.

O terceiro horizonte de reflexão se refere às próprias contradições internas ao cristianismo que se inseriu na América Latina durante o processo de ocupação europeia do continente. Apesar das controvérsias teológicas próprias da decadência do cristianismo medieval que resultaram no esfacelamento da cristandade, parece haver um alto grau de similaridades e convergências entre protestantes e católicos, quando a vida das vítimas do moderno sistema mundial foi o ponto de partida da elaboração teológica e da articulação das práticas pastorais. É o que tentei mostrar com a comparação entre Las Casas e Lutero. Julgo ser uma tarefa teológica prioritária recuperar esta tradição profética que perpassa a cristandade e cujo ponto de convergência é a sensibilidade pelo grito das vítimas, com a respectiva releitura dos textos sagrados e das fontes da tradição a partir deste lugar hermenêutico. Isto implica na crítica às teologias hegemônicas, principalmente quando escondem seus lugares hermenêuticos ou simplesmente os declaram universais, para articular um horizonte teológico aberto a múltiplas verdades gestadas na cotidianidade das vítimas, com suas ambiguidades, contradições, assimetrias, todas historicamente situadas e incompletas.

Bibliografia

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ZWETSCH, Roberto E. Las Casas – um profeta da causa indígena. Estudos Teológicos, ano 31, 2(1991), p. 134-150.

 


[1]Na procura por fontes que pudessem respaldar este ensaio, constato que Roberto E. Zwetsch, já em 1991, havia aventado esta possibilidade: “Ficamos pensando em uma nova tarefa: seria interessante tentar uma comparação entre Las Casas e Lutero. Um, reformando a Igreja na Europa. Outro, denunciando a mesma Igreja e o império espanhol romano-germânico desde as Índias. Lutero foi um teólogo na acepção maior do termo. Las Casas foi um profeta, um missionário que se colocou inteiramente ao lado das vítimas da destruição, um reformador social. Ambos, movidos fundamentalmente por sua fé. Muita coisa os diferencia, a começar pelo próprio entendimento desta fé. Mas não haverá neles muito de desafio para nós, ainda hoje?” (Zwetsch, 1991, p. 148-149).

[2]LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980.

[3]SCHALKWIJK, Frans Leonard. Igreja e Estado no Brasil Holandês (1630-1654). Recife: FUNDARPE, 1986.

[4]Comento os fragmentos destas cartas transcritas em: RIBEIRO, Darci; MOREIRA NETO, Carlos de Araujo. A fundação do Brasil: Testemunhos 1500-1700). Petrópolis: Vozes, 1993.

[5]MAYER, Alicia. Lutero en el paraíso: la Nueva España en el espejo del reformador alemán. México: Fondo de Cultura Económica, 2008, p. 102.

[6]Veja-se a este respeito: Representacion a los regentes Cisneros y Adriano, de março de 1516;  Memorial de Remedios para las Indias, também de março de 1516 e Memorial de denuncias apresentado al cardenal Cisineros, de junho de 1516. In: Blioteca de autores españoles. Obras escogidas de Fray Bartoleme de Las Casas vl. V - Opúsculos, cartas y memoriales. Madrid, 1958, p. 3-31.

[7]DUSSEL, Enrique. Política de la liberación: historia mundial y crítica. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 199.

[8]Blioteca de autores españoles. Obras escogidas de Fray Bartoleme de Las Casas vl. V - Opúsculos, cartas y memoriales. Madrid, 1958, p. 67-68.

[9]Idem, p. 68.

[10]LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas, Vl 6. São Leopoldo: Sinodal, 1996, p. 417.

[11]Idem, p. 417.

[12]Citado por BRUIT, Héctor Hernan. Bartolomé de Las Casas e a simulação dos vencidos. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995, p. 103.

[13]LUTERO, Martinho. Comércio e usura. In: Obras selecionadas, vl. 5, São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 367 – 428, aqui 379.

[14]Idem, 399.

[15]Veja-se a este respeito GUTIÉRREZ, Gustavo. Deus ou o ouro nas Índias (século XVI). São Paulo: Paulinas, 1993.

[16]Apud SUESS, Paulo. A conquista espiritual da América Espanhola. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 281.